quinta-feira, 27 de março de 2008

Wesceslau de Moraes - O Culto do Chá

Parte 2

Oh, fé dos velhos tempos!... Oh, santos patriarcas de tão vários países e tão diferentes seitas, tenazes campeões, que fostes incutindo nos simples a crença, a esperança, o amor - bálsamos consoladores das duras misérias deste mundo -, como vos amo, a todos!...
Meus piedosos pensamentos elevam-se neste momento a Darumá. Segundo a tradição da gente japonesa, Darumá, o grande apóstolo indiano do budismo, veio à China aí pelo começo do século VI da nossa era cristã, e em terras chinesas pregou em honra da verdade, iluminando o espírito dos povos.
Consta que, por voluntária desistência das efémeras alegrias terreais, Darumá votou-se a passar a vida de joelhos sobre o solo pedregoso, absorto em contemplações místicas, sem mesmo permitir-se o simples regalo de dormir. Tantos anos permaneceu de tal maneira, que as pernas se lhe gastaram, claro está; e é assim, sem pernas, só com a cabeça e com o tronco, envolto num manto carmesim, que ainda hoje é figurado. A imagem tornou-se querida e popular entre esta boa gente japonesa; é mesmo um brinquedo corriqueiro entre as mãozitas das crianças - os santos e os meninos vivem sempre em boa companhia -; lembrando o tal brinquedo o nosso frade de sabugo, pela teima em voltar, por mais voltas que se lhe dêem, à sua postura habitual. Deve ainda saber-se que Darumá tem dado assunto, desde remotos tempos até hoje, a pintores da mais alta valia; Hokusai foi um deles, pintando o famoso Darumá sobre uma folha de papel de cerca de duzentos metros quadrados de grandeza, empregando oitenta litros de tinta no desenho e servindo-se de cinco vassouras à laia de pincéis; estendida a tela sobre o campo, no telhado de um templo a turba admirava a obra e aplaudia o mestre.
Mas voltemos ao que mais nos interessa, respeitante ao venerando culto que invoquei, ajoelhado sobre as pedras. Consta mais que, em certa noite, as pálpebras se lhe cerraram de fadiga, e o bom Darumá deixou-se adormecer, para só acordar pela manhã. Então, pedindo a alguém uma tesoura ou instrumento parecido, cortou a si próprio as pálpebras indignas e arremessou-as ao solo, num gesto de despeito... As pálpebras, por milagre, enraizaram, dando nascença a um gracioso arbusto nunca visto, que medrou mui de pronto e cujas folhas, tratadas de infusão pela água quente, foram um remédio precioso contra o sono o cansaço das vigílias. Estava conhecido o chá; tem pois na China a sua origem, e é coisa santa, como se acaba de provar. Crê que quer; mas devo advertir que este livro foi escrito para os crentes.

Retirado de O Culto do Chá

Sem comentários: