domingo, 17 de agosto de 2008

Bem vindos ao séc. XXI

Balcãs e Cáucaso, como sempre, vão continuar a ser o sítio onde se medem as forças. E uma nova Rússia autocrática e agressiva mostrou o seu poder, a UE e os EUA mostraram o seu declínio. Bem-vindos ao século XXI.


quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Wenceslau de Moraes - O Culto do Chá

Parte 9


Quando começaram a tomar chá os japoneses, era este reduzido a um impalpável pó e com ele se fazia a beberragem; depois veio o uso de empregar as folhas, apenas escolhidas e passadas pelos fornos; e é esta, ainda hoje, a maneira mais comum de prepará-lo.
No Japão toda a gente bebe chá - ricos e pobres, nobres e plebeus -: bebe-se na ocasião das refeições e a toda a hora, a pequeninos goles. No lar, quando entra o visitante, oferece-se-lhe, após as reverências, uma almofada de regalo e uma chávena de chá, palestra, fala da chuva e do bom tempo; só mais tarde de trata do negócio. Nos templos famosos, em Quioto, por exemplo, o bonzo oferece chá ao peregrino antes de lhe mostrar as relíquias e os museus. Pelos caminhos mais agrestes, que vão serpeando pelas colinas arriba, há rústicos poisos espaçados aqui e acolá, onde o caminheiro descansa alguns minutos, bebe uma chávena de chá, troca um sorriso, deixando em retorno um cobre sobre a esteira. Um restaurante, na pitoresca linguagem japonesa, diz-se chaya - que quer dizer - casa de chá. - De sorte que a chávena de chá, que acompanha os bons dias dados a quem chega, não constitui simplesmente uma norma rotineira, um hábito banal, tornou-se como que o símbolo da doce hospitalidade japonesa, um rito de bonomia desta gente, exercido religiosamente entre amigos, entre estranhos também, porque ao estranho, que larga à porta as sandálias, vem ao nosso lar e nos saúda, deve-se já um sorriso e a sua parte de conforto.
Na casa, nua de móveis, porém mimosa de asseios requintados, figura sempre o braseiro sobre a esteira, e nas brasas vai fervilhando a chaleira de ferro cheia de água; o bon (uma bandeja) está cerca, contendo o bule, as cinco chavenas (cinco porquê? talvez por serem 5 os dedos em cada mãozita japonesa), os cinco pires de madeira ou de metal, o cofre de estanho contendo o chá em folhas e ainda o pequenino recipiente de porcelana chamado yuzamashi, cuja ordinária serventia vai muito em breve conhecer-se. O sentimento artístico japonês deprava-se naturalmente na indústria de hoje, em grande parte com destino à exportação para a Europa e para a América; é nos utensílios comuns de uso indígena, onde não intervém o modernismo, que ainda reside o gosto estético, puro e inconfundível, da gente japonesa, revelando por si o complicado conjunto de esmeros, de elegâncias, de quimeras, em que a alma deste povo se deleita. No que respeita ao serviço de chá, é inarrável a gentileza de todo este arsenal de bagatelas, minúsculas, dando a impressão de serem destinadas a um banquete de bonecas!...
A água passa da chaleira para o yuzamashi, onde arefece, pois é preceito fazer-se chá com água que ferveu, mas já não ferve; prepara-se depois no bule a infusão, que é oferecido aos hóspedes nas pequeninas taças de fina porcelana.
Eis a prática e eis a pequena oferta, actos da vida íntima não poucas vezes repetidos durante cada dia, desde pela manhã até à noite. Poderiam julgar-se sem méritos que valessem do estranho um instante de atenção e um comentário; mas não sucede assim. Para alegria dos olhos, a simples preparação do chá imprime um relevo delicioso à graciosidade inata da musumé, na atitude que lhe é mais habitual, de joelhos sobre a esteira, junto do seu braseiro. A mímica é impressiva, única: privilégio daquela figurinha meiga e ondulante e daquela buliçosa mão, de finíssimos contornos, da japonesa, que é, em suma, a Eva mais gentilmente pueril, mais cativantemente quimérica, mais feminina enfim, de todas as Evas deste mundo. Parece certo que jamais o japonês, que ignora o beijo, haja pousado a boca naquela mão que exibe esplendores de graça para servir-lhe o chá; o forasteiro, em intimidade serena, pode ensaiar o galanteio se a fantasia o tenta; e então verá talvez que a mãozita da musumé, reconhecida ao afago, se aconchega de encontro aos lábios, se demora, como uma rola dócil golosa de carinhos.