domingo, 9 de março de 2008

As Farpas



Ontem, no hipódromo de Matosinhos, realizou-se a corrida de cavalos da estação do Outono, promovida pelo Jockey Club Portuense. Um dia belíssimo. O hipódromo, apesar de não ter a vista grandiosa do hipódromo de Belém, está situado risonhamente à beira do mar por um lado, cercado de pinheirais por outro. A pista, de mil e quinhentos metros de extensão, plana e de bom piso. Não obstante essas favoráveis condições, para disputar o prémio do Governo na importância de 300$000 réis inscreveram-se apenas dois cavalos. O prémio de 100$000 réis, do Jockey Club, foi alcançado um cavalo que correu só, e chegou à meta no meio de grandes aplausos... Efectivamente ele tinha-se vencido a si mesmo, que é o cúmulo da força e da filosofia.
Na tribuna reservada às famílias dos sócios e na tribuna do público não havia mais de duzentas senhoras. No interior do campo uma dúzia de carruagens, quase todas de praça. A maioria do público tinha tomado modestamente o trâmuei de Matosinhos. De sorte que, pelo seu aspecto exterior, esta corrida de cavalos parecia especialmente destinada a aperfeiçoar a raça dos carros americanos.
O Governo, que por proposta do governador civil do distrito retirou ao teatro lírico do Porto o subsídio do quatro contos de réis, mandando aplicar essa quantia ao custeio de uma casa de correcção, suprimiu igualmente o prémio de 300$000 réis à sociedade do Jockey Club.
Desviar do teatro para uma penitenciária a protecção pecuniária do Estado parece-me ser da parte do poder executivo um duro e acerbo epigrama ao dilantelismo portuense. Enquanto à supressão do prémio ao Jockey club, o facto não é talvez amável para o Sport do Largo dos Lóios e da Rua de Santo António, mas é justo.
Enquanto o Governo não proteger o aperfeiçoamento da raça humana por um meio conhecido e praticado em toda a parte - a instituição dos jardins de infância -, será inconveniente, e poderia até ser perigoso, estabelecer um excessivo desequilíbrio entre as perfeições progressivas do cavalo e das inferioridades estacionárias do cavaleiro.
Para as necessidades do homem o cavalo parece-me que já está desenvolvido de mais, porque o cavalo de corridas excede o limite da utilidade prática e é uma excecrescência monstruosa. Se querem fazer sacrifícios para aperfeiçoar a raça de alguns dos animais que nos servem, não é para o cavalo que devemos dirigir a nossa atenção.
O homem tem que saldar com o burro uma dívida de indemnização. O burro doméstico é um animal atrofiado pela dureza e pela crueldade humana. Estudos de zoologistas demonstram que o burro selvagem é muito mais belo, mais corpolento e mais forte do que o burro doméstico. Como esse prestante quadrúpede era sóbrio, paciente e bom, nós abusámos dele, sobrecarregámo-lo de trabalho, pusemo-lo em dieta permanente, enchemo-lo de pancada. Com esse regime o burro degenerou, cresceu-lhe pêlo, estreitaram-se-lhe os ossos, alongou-se-lhe a orelha, fez-se melancólico e casmurro. Em pequeno é ainda vivo, esbelto, elegante, ligeiro; mas logo que principia a conhecer o mundo e os homens torna-se sorumbático, pensativo e caturra.
É preciso proteger o burro. A espécie assinina é susceptível de grandes progressos. Tornar esses progressos efectivos é uma obrigação para com a nossa conssciência e para com o burro, tão injustamente desprezado e, todavia, tão útil animal, tão submisso, tão simpàticamente prestável aos pobres, aos velhos, às crianças e aos enfermos!

Retirado de "As Farpas" de Ramalho Ortigão

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