quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Wesceslau de Moraes - O Culto do Chá

Parte 11

A maneira de preparar a infusão do chá em pó e a arte de servi-lo constituem a tão famosa cerimónia do chá-no-yu. Foi assim que o uso do chá se introduziu no Japão, como uma prática litúrgica dos frades budistas da seita de Daisu, exercida no propósito de prolongarem as místicas vigílias preceituadas; servia ao mesmo tempo de pretexto para reuniões íntimas, que eram, imagine-se, um aprasível desenfado à proverbial monotonia do convento; sendo um meio eficaz de estreitar laços de estima, pelas confidências segredadas, pelos sorrisos beatíficos que se cruzavam, enquanto a única taça ia passando, de mão em mão, de boca em boca, fraternalmente, até se esvaziar.
Mais tarde adoptou-se entre o povo o uso das folhas; mas o chá-no-yu persistiu nas bonzarias, propagando-se também nos costumes profanos, então com um exuberante luxo e aparato, que muito apaixonou a alta nobreza. Pelos dias que correm, ainda está em moda, sem distinção de classes; é um hábito gentil que ficou dos velhos tempos e a que todos podem entregar-se, tido em valia pela delicadeza estética do cenário e ainda não despido do prestígio ortodoxo que vem da remota tradição.
O chá-no-yu, se pode definir-se, é a arte de preparar a infusão em pó, com esses escrúpulos de limpeza, com esses requintes de elegância de que só é capaz o japonês; sendo a bebida oferecida a alguns amigos de eleição, adrede reunidos num recinto disposto para a paz do pensamento e para o agrado dos sentidos.
Bom é dizer agora que os códigos referentes a matéria tão grave são inúmeros, diversas as escolas; e os grandes profissionais, chajin (homens do chá), de celebridade imorredoira, centenas de volumes escreveram sobre o assunto.
Tudo foi regulamentado e comporta um preceito, que não é lícito esquecer. Nos tempos áureos do chá-no-yu, o pavilhão que recebia os hóspedes era construído num jardim e obedecia a uma arquitectura inconfundível. No seu arranjo interno, para a cor das paredes, para a disposição de luz, para o número das esteiras, para a jarra com flores ou com um ramo de árvore, havia praxes a seguir; o kakemono (quadro suspenso da parede) de via representar uma paisagem que fosse impressionar a pupila com carinho; ou antes uma simples sentença escrita por um pincel de mestre caligráfico, pois nada comove tanto a aguda sensibilidade desta gente como os seus caracteres de estranha construção, cada um equivalendo já a uma síntese de ideias e predispondo, pela sentida contemplação - ora uma desenvoltura de traço, ora por uma ondulação de curva-, ao vago discorrer da alma sonhadora.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Wesceslau de Moraes - O Culto do Chá

Parte 10

O chá japonês, servido invariavelmente leite e sem açúcar, que lhe prejudicariam o aroma, é a bebida mais suavemente agradável que possa oferecer-se ao nosso paladar (não de todos, porém, mas um paladar sentimental, um tanto sonhador... que nisto dos nossos orgãos de sentir há temperamentos, aptidões afectivas características....). O guyokuró, por exemplo, que é o mais celebrado chá de Uji e de todo o Japão, instila tais subtilezas balsâmicas de sabor, que mais parece um perfume; poderia dizer-se que uma maravilhosa alquimia conseguiu liquefazer os aromas das flores - flores do jardim, flores silvestres -, transferindo do olfacto ao paladar a impressão do gozo. Assim é o guyokuró; claro está que as palavras não podem traduzir senão por comparação as emoções sentidas; e esta, a do agridoce deliciosíssimo que nos fica nos lábios, persistindo, como na memória persiste uma reminiscência, uma saudade, é incomparável...
O chá japonês tem a virtude de mitigar a sede. Assim se explica o hábito de os japoneses não beberem água; mesmo na força dos calores, em pleno Agosto, a chávena de chá, saboreada a goles, lhes dá pleno consolo. Aponta-se-lhe mais outros condões: excita ligeiramente o organismo, conbate o cansaço das vigílias, predispõe ao bem-estar, infiltra no cérebro não sei que subtil embriaguez, lúcida todavia, que nos torna mais afectivos às sensações de agrado e mais aptos às elaborações do pensamento.